Um império em liquidação
A crise da economia dos Estados Unidos, o dólar barato e a ascensão dos emergentes vêm fazendo com que ícones do capitalismo americano passem para as mãos de estrangeiros
Há pouco mais de 20 anos, no fim da década de 80, empresas japonesas iniciaram uma onda expansionista nos Estados Unidos. Com a economia em alta graças à força de suas exportações, os japoneses passaram a comprar corporações até então intocáveis, assumiram estúdios de cinema, invadiram ruas e estradas com seus carros inovadores e baratos e encheram as prateleiras de lojas do maior mercado consumidor do mundo com seus aparelhos eletrônicos de última geração. A ousadia foi tão longe que eles chegaram a arrematar o Rockefeller Center, mítico edifício no centro de Manhattan e um dos maiores símbolos do sucesso do capitalismo nos Estados Unidos. Essa invasão japonesa fez sangrar o orgulho americano. Sem ter como impedir que os asiáticos comprassem suas empresas e instalassem fábricas no país, associações em defesa do patrimônio nacional foram formadas e chegaram, em vão, a propor um boicote aos produtos asiáticos. Passados 20 e poucos anos, os americanos agora deparam com uma nova invasão. No lugar dos japoneses, cuja economia perdeu o vigor dos anos 80, chegaram investidores de todos os cantos do mundo, boa parte de países emergentes. Com dinheiro vindo do sucesso de suas empresas ou de fundos soberanos bilionários, eles têm comprado grandes companhias, uma após a outra, e preparam-se para novas investidas em breve. “Isso é só o começo. Muitas empresas nos Estados Unidos ainda serão vendidas a estrangeiros”, diz o espanhol Mario Guillén, diretor do Instituto Joseph H. Lauder de Administração e Estudos Internacionais, da escola de negócios Wharton.
O exemplo mais recente dessa “invasão bárbara” foi a compra da centenária cervejaria Anheuser-Busch pela belgo-brasileira InBev. A dona da Budweiser, marca tão conhecida nos Estados Unidos quanto o Mickey Mouse e a Coca-Cola, resistiu por pouco mais de um mês à oferta feita pelo brasileiro Carlos Brito, presidente mundial da InBev. Apesar de rápida, a negociação não foi das mais suaves. Brito e August Busch IV, o polêmico herdeiro e agora ex-presidente da Anheuser, travaram uma batalha alicerçada em dinheiro e imagem pelo controle da companhia, e o resultado, para desespero dos americanos mais patriotas, foi trágico: o negócio foi fechado por 52 bilhões de dólares. No passado recente, poucos poderiam imaginar que uma empresa com capital brasileiro pudesse ter fôlego, coragem e recursos para uma aquisição dessa natureza. Pois teve. E não foi a única. Recentemente, duas outras companhias do Brasil, Gerdau e JBS-Friboi, tiveram a “ousadia” de comprar empresas nos Estados Unidos. A compra da Anheuser-Busch chegou a gerar uma reação bem-humorada de um desses desbravadores. Ao saber da compra, Joesley Batista, presidente do frigorífico JBS-Friboi, que fez uma série de aquisições nos Estados Unidos e hoje domina 30% do mercado americano de carnes, ligou para Carlos Alberto Sicupira, um dos maiores acionistas individuais da InBev. “Agora o churrasco do americano é brasileiro. Nós temos a carne e vocês a cerveja”, disse Batista.
Para uma economia como a americana, tão acostumada aos fundamentos básicos do capitalismo, o jogo de fusões e aquisições não chega a causar surpresa. Apesar de não ter sido uma constante, outras companhias americanas foram arrematadas por investidores estrangeiros durante o século 20 (inclusive na invasão japonesa da década de 80). O que chama a atenção nesse novo ciclo é o tipo de companhia que vem sendo comprada e a intensidade com que isso tem acontecido. Nos últimos três anos, empresas e ícones do capitalismo americano, como os computadores IBM, o Chrysler Building e a marca de artigos esportivos Reebok, apenas para citar alguns poucos exemplos, foram parar em mãos estrangeiras. Somente no primeiro semestre deste ano, as transações de fusões e aquisições tendo corporações americanas como alvo movimentaram uma cifra superior a 700 bilhões de dólares — e boa parte dos compradores veio de países emergentes. A presença de companhias americanas na última edição da lista das 500 maiores empresas do mundo da revista Fortune é a menor nesta década. Apenas 153 companhias com sede nos Estados Unidos fizeram parte da última lista. Enquanto isso, a presença de emergentes cresce. Há menos de dez anos, Índia, México e Rússia tinham apenas uma empresa na lista. Na última edição, a Índia aparece com sete, enquanto México e Rússia têm cinco cada um. O Brasil, que tinha três, hoje aparece com cinco representantes e deve aumentar sua presença no ranking do ano que vem.
A explicação para essa alteração de forças na economia mundial está, em grande parte, no enfraquecimento do dólar. A moeda americana vem perdendo valor quase diariamente. Em comparação com o real, o dólar atingiu no meio de julho sua pior cotação em dez anos e não há sinais de recuperação à vista. Além disso, a crise da economia americana fez com que o valor de mercado de muitas empresas despencasse, transformando-as em barganha aos olhos de investidores no mundo inteiro — especialmente companhias de países emergentes. Nos últimos anos, embaladas pela valorização das commodities, essas nações vêm crescendo acima da média mundial e algumas de suas companhias estão com grandes recursos em caixa. Forma-se então a equação que propicia essas aquisições. De um lado, a economia americana precisando de capital. De outro, a abundância de recursos. “Mas esse é um movimento bom para todos. Alguns empresários americanos precisam salvar o que resta de seus patrimônios, os Estados Unidos precisam atrair recursos para equilibrar sua balança de pagamentos e os estrangeiros têm acesso ao maior mercado do mundo”, diz Guillén, de Wharton.
Maiores compradores | |
Origem das empresas que mais fizeram aquisições nos Estados Unidos em 2007(1) (em bilhões de dólares) | |
Arábia Saudita | 12,8 |
Cingapura | 11,2 |
Kuait | 9,5 |
Emirados Árabes | 9,2 |
Brasil | 8,8 |
Índia | 5,3 |
Coréia do Sul | 5 |
China | 3,6 |
Israel | 2,5 |
Barein | 1,4 |
(1) Entre os países emergentes Fonte: Dealogic |
A visão otimista do professor de Wharton não é compartilhada por todos os americanos. A venda de companhias a investidores estrangeiros tem causado uma série de reações na sociedade americana — especialmente entre sindicatos e políticos. Os alvos da expansão internacional são, normalmente, companhias com custos altos e gestão pouco eficiente. Para os trabalhadores, a chegada de estrangeiros significa demissões à vista. “A InBev é conhecida por não ter os mesmos valores da Anheuser-Busch. Isso pode não só prejudicar os empregados mas também as comunidades de forma generalizada”, disse a EXAME Jack Cipriani, diretor do sindicato da cervejaria americana. O segundo grupo — formado pelos políticos — está reagindo por razões tão pragmáticas quanto as do primeiro: a proximidade da eleição presidencial. Em um de seus discursos, o candidato do Partido Democrata, Barack Obama, também fez referências negativas à compra da Anheuser-Busch pela InBev. Seu comportamento, porém, já era esperado. Tradicionalmente, os democratas são muito mais protecionistas do que os republicanos — e os sindicatos são parte importante de apoio ao partido de Obama. Como é ano de eleição, o democrata precisava dar uma satisfação a seu eleitorado. Mas tudo leva a crer que, se ele ganhar o pleito, esse discurso não se transformará numa caça às bruxas ao investidor estrangeiro.
Historicamente, essa resistência nos Estados Unidos é muito mais retórica do que prática. Apesar do discurso protecionista, a economia americana continua sendo uma das mais abertas do mundo. Uma pesquisa feita pelo centro de estudos Heritage Foundation, dos Estados Unidos, coloca o país como o quinto mais aberto do planeta e o primeiro entre as grandes nações. Já o Brasil aparece em 101o lugar. “Os Estados Unidos só não entraram em recessão por causa do alto volume de exportações”, diz Jim Roberts, diretor de pesquisa da Heritage Foundation. O que se deve esperar para os próximos anos é uma reação mais intensa em relação aos negócios envolvendo o que os americanos consideram “segurança nacional”. Algumas negociações nessas áreas têm sido barradas pelos órgãos de regulação do país. Recentemente, o Congresso vetou a venda de seis portos para uma companhia dos Emirados Árabes Unidos, alegando questões de segurança. Há cerca de um ano, a companhia de petróleo chinesa Cnooc também foi impedida, pelos mesmos motivos, de comprar a americana Unoco. A administração Bush intercedeu para que a Chevron apresentasse uma proposta e, gentilmente, pediu ao governo chinês que não insistisse na oferta.
Engana-se, porém, quem vê nesses sinais provas de que o capitalismo americano está derretendo. Até agora, apenas empresas de setores que envolviam pouca ou nenhuma necessidade de inovação e desenvolvimento tecnológico foram adquiridas por investidores estrangeiros. Em sua maioria, essas companhias utilizavam mão-de-obra de forma intensiva e competiam diretamente com produtores de países emergentes. Por causa de fatores como o alto custo dos salários, elas eram mais ineficientes que suas congêneres estrangeiras. Mas não se tem notícia de que empresas como Apple, Google e Microsoft, que dependem fortemente de inovação e criatividade, estejam passando para as mãos de companhias indianas, chinesas ou brasileiras. Em negócios com essas características, o predomínio dos americanos ainda é confortável. “O acionista não vê vantagem em vender uma empresa como a Apple a um investidor que não terá como substituir o Steve Jobs à altura”, diz Danny Claro, coordenador do Centro de Pesquisas em Estratégia do Ibmec São Paulo. Ao menos por enquanto apenas companhias de “coleções passadas” ou com algum pequeno defeito entraram na liquidação americana.
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